THE DARK EYE
Malevolência



COReplay - 15 / 03 / 08

 


III. ENTREVISTA COM RUSS LEES

Como produto, THE DARK EYE foi objecto de um sucesso muito reservado, apesar da reacção unânime e enfática da crítica no destaque das suas qualidades, o jogo submergiu no esquecimento a par de muitos outros títulos de aventura da era do disco compacto digital. Passados 13 anos do seu lançamento em 1995, contactei o seu autor, Russ Lees, sem esperança de receber qualquer resposta todavia fui brindado com a sua cordialidade e sua atenção na hora de responder às imensas questões que lhe propus – e a partir  das quais produzi a seguinte entrevista. Chamo atenção para a profundidade da visão deste artista, assim como a originalidade dos conceitos que conseguiu incluir no seu primeiro e único título editado em mercado.

COREGAMING : Olhando de perto para a sua carreira, conseguiu combinar o trabalho de um escritor com o de um game designer. Como deve ter reparado, não existem muitas pessoas nesta posição, com verdadeiro conhecimento sobre software, que também sejam responsáveis pela criação de peças de teatro contemporâneas de renome: de facto, a maioria dos dramaturgos parece ignorar este meio. O que se encontra por detrás do seu interesse por videojogos?

RUSS LEES : Tenho vivido uma vida variada e eclética. A minha primeira carreira foi como engenheiro electrónico – desenhava máquinas de Raios-X digitais. No entanto, eu venho de uma família cheia de artistas de teatro e sempre fiz teatro ao vivo (actuando, dirigindo e escrevendo) como uma ocupação secundária. Depois de alguns anos, fiquei insatisfeito com a esterilidade da engenharia e desisti de forma a poder seguir o drama de forma séria. Por volta dessa altura tive a oportunidade de trabalhar para a Inscape. Ocorreu-me que os jogos interactivos eram uma nova forma de arte e que seria emocionante contribuir para essa discussão nessa altura. Para além do mais, permitiu-me um meio que iria combinar a minha experiência técnica e criativa.

CG : THE DARK EYE é um jogo excepcionalmente bem planeado que claramente revela a quantidade de trabalho investido no seu planeamento. Pode dizer-nos como este projecto se iniciou?

RL : O início do projecto DARK EYE foi uma grande coincidência. Michael Nash (fundador e presidente da Inscape) tinha sido um amigo de infância meu. Um dia, estava eu a visitá-lo em Los Angeles, quando ele me mostrou um jogo de computador que ele tinha ajudado a produzir, Freak Show pelos Residents. Nunca tinha visto nada assim e comecei a surgir com imensas ideias que o meio deixaria perseguir. O Michael disse “bem, estou a pensar em fundar a minha própria companhia… porque é que não anotas algumas dessas ideias e nós vamos apreciá-las?”. Enviei-lhe talvez umas cinco ideias, incluindo “o jogador entra nas histórias de Edgar Allan Poe.”

Alguns meses depois, ele chamou-me e disse “estamos a pensar fazer o projecto do Poe. Porque é que não te mudas para Los Angeles por umas semanas e crias um protótipo?”. Bem, eu não tinha ideia absolutamente nenhuma do que o conceito de “o jogador entra nas histórias de Poe” queria dizer na realidade, por isso tive de pensar rapidamente numa forma plausível de lhe dar significado. O protótipo inicial era a versão do narrador da história 'Tell-Tale Heart', da qual o Michael tinha gostado, portanto a Inscape comprometeu-se com o projecto inteiro. É quase irónico que descrevas o jogo como “bem planeado” porque enquanto estávamos a criá-lo não terias feito essa afirmação. Tivemos um ciclo de produção relativamente curto (muito menos do que um ano) e de facto uma ideia muito mínima de como o jogo iria parecer na generalidade.

Houve muitas discussões a altas horas da noite sobre o que o conceito de “interactividade” realmente significava. Deveria o jogador ser autorizado a mudar o fim de uma história, por exemplo? (Recorda-te que nessa altura as narrativas ramificadas estavam um pouco na moda, e muitos jogos publicitavam-se com frases como “mais de 20 finais disponíveis!”). A uma certa altura pensámos que talvez o jogador pudesse começar a combinar os contos para criar todo um novo. Já estávamos bem avançados na produção antes de nos ter ocorrido a ideia de criar a nossa própria história central, da qual os outros contos se ramificariam.

CG : Ao jogar THE DARK EYE uma questão permaneceu na minha mente dizendo respeito à variedade e riqueza pouco comum das várias estéticas empregues. Os personagens são animados em stop-motion tradicional, os fundos são desenhados no computador (pre-render), as sequências incluem fotomontagem, pinturas e desenhos que, no entanto, conseguem reunir-se num estilo unitário. Qual a razão por detrás de uma heterogeneidade tão grande de recursos artísticos?

RL : Fomos especialmente sortudos no jogo por poder ter a Rebekah Behrendt como Directora Artística. Ela era (e é) extremamente talentosa e tinha conhecimento de quais artistas pudessem estar disponíveis para o nosso projecto. A ideia da animação stop-motion foi dela. O que tu descreves é o resultado de uma colaboração realmente impressionante de artistas internos e contratados sob a sua direcção.

Ainda, o nosso artista interno principal era o Bruce Heavin. Baseamos a maioria do tom visual a partir da sua visão intensa. Para mais a Inscape era o tipo de companhia onde alguém podia dizer “hei, não seria porreiro se tivéssemos texto nas paredes?” e nós iríamos tentar fazê-lo.

CG : Um dos elementos mais surpreendentes no jogo é o facto de que o jogador é livre de decidir a ordem com que explora os diferentes contos. Mas, como designer, deve-se ter deparado com a árdua tarefa de eleger entre dezenas de histórias memoráveis do Edgar Allan Poe. O que o levou a escolher estas em específico?

RL : Sim, eu li a íntegra do trabalho de Poe (já me esqueci de quantas obras escreveu: algo como 100 contos e muitos poemas). Escolhi cuidadosamente aqueles que pareciam trazer algo ao aspecto interactivo do jogo – isto é, onde o jogador tivesse de exercer actividades como emparedar alguém, mais do que apenas assistir ao desenrolar do conto. Também me concentrei em contos nos quais a exploração interactiva da psicologia dos personagens fosse mais interessante.

Originalmente queríamos fazer sete contos de forma interactiva, e cheguei a escrever argumento para o Hop-Frog, King Pest e, penso eu, The Black Cat. Tivemos muito pouco tempo para a produção, e tornou-se claro que não podíamos de forma alguma incluir todos estes contos, portanto reduzimos aos que achámos mais funcionais na perspectiva do jogador.

CG : Um dos temas centrais no jogo é a morte, um elemento comum no trabalho de Poe. No entanto, não apenas ofereceu ao jogador a possibilidade de agir como o criminoso, como acontece nos textos de Poe onde o narrador é o sujeito culpável, mas também a hipótese de ser a vítima. O que está por detrás desta decisão revolucionária?

RL : Sim, foi mesmo uma óptima ideia! No entanto, lamento dizer que o ímpeto foi mais prático do que criativo. Com um jogo como o THE DARK EYE, tínhamos o problema de que cada acção tomada pelo jogador implicava recursos únicos: isto é, tínhamos de criar novos objectos e ambientes para cada conto e cada interacção. Com a maioria dos jogos, existe um género básico de gameplay recorrente. Por exemplo, uma vez conseguida a mecânica de disparar sobre algo ou lutar conta algo de forma correcta, essas interacções serão basicamente as mesmas através de todo o jogo.

Mas DARK EYE não funciona assim. De forma a reutilizar alguns dos nossos recursos, tive a ideia de que o jogador podia jogar o mesmo cenário duas vezes – uma vez como vilão e outra como vítima. Fiquei muito satisfeito com esta ideia, porque me permitiu ir mais a fundo nos contos do que seria possível apenas com uma só perspectiva. O jogo também permite trocar de personagem no meio de um conto. Pedi esta ideia emprestada de outro projecto da Inscape: BAD DAY ON THE MIDWAY (também dos Residents). Devo dizer em retrospectiva que este aspecto funcionava muito bem para o Bad Day, mas preferia que não a tivéssemos utilizado neste jogo porque confundo o fluir da experiência do jogador.

CG : Apesar de não saber os números exactos, estou certo de que esta foi uma grande produção que reuniu um grupo de talentos e artistas consagrados. Por exemplo, como é que conseguiu ter Thomas Dolby ou o William S. Burroughs associados a este projecto? Quais eram as ideias deles sobre o meio dos videojogos?

RL : Nessa altura, o Thomas Dolby dirigia uma companhia (Headspace) que produzia música para jogos interactivos. Estava localizada em Los Angeles tal como nós, por isso foi muito conveniente recorrer a eles. Devo dizer que o senhor Dolby e os compositores do seu estúdio eram altamente profissionais (o que nem sempre acontece no mundo dos jogos, ou mesmo no mundo do rock 'n roll para esse efeito!) e maravilhosos colegas de trabalho.

Perseguimos activamente o William S. Burroughs porque sentimos que necessitávamos de um nome famoso, apesar de offbeat, para anexar ao jogo. Fui de avião até ao Kansas, onde Burroughs vivia, para o gravar. Foi uma verdadeira aventura! Ele não fazia a mínima ideia do que era um jogo interactivo, e não se parecia nada importado em saber. Ele gostava muito de Poe, porém, o que era tudo o que importava.

Os outros actores simplesmente mandaram cassetes baseadas em amostras de argumentos que tínhamos dado aos seus agentes. Conseguimos ter excelentes actores, penso que por causa da maioria deles estava empenhado em fazer uma actuação genuína e não apenas vender um produto. A equipa de produção era um grupo ad hoc de pessoas muito dedicadas que não tinham assim tanta experiência. Fomos mesmo muito sortudos nesse aspecto.

CG : Este jogo compreende uma história central original que está em perfeita consonância com as restantes. Esta história também é adaptada do trabalho de Poe ou é inteiramente original?

RL : A história central (à qual chamámos de “Malevolence” entre o grupo) foi escrita por mim. Peguei na história “Fall of the House of Usher” e mudei-a radicalmente para que ecoasse os temas dos contos de Poe que estávamos a utilizar.

CG : A progressão do personagem anónimo até à insanidade é ilustrada por estas diferentes perspectives de personagens que, como o assassino em ‘Tell-Tale Heart”, sofre de distúrbios mentais profundos. O que vê de tão fascinante em personagens à beira da sua sanidade?

RL : Bem é certo que é uma ideia bem desenvolvida no trabalho de Poe. Os seus narradores são tão convincentes à beira de uma crise nervosa que os críticos se questionaram se o próprio Põe não era também doente. É verdade que este é um aspecto do seu trabalho que me atrai. Penso que a exploração da loucura se proporciona a dramas atraentes: é certo que Shakespeare e Tennessee Williams a exploraram, como também Moliére de uma perspectiva cómica – dado que muitas vezes se trata apenas de um ligeiro exagero do ponto de vista de uma perspectiva “sã”. Sempre senti que a loucura se esconde mesmo debaixo da superfície com toda a gente.

CG : Na sua opinião, o que é que ainda não foi dito acerca do seu jogo e que pensa ser essencial?

RL : Uma das grandes virtudes dos jogos de vídeo é a sua capacidade para imergir o jogador num outro tempo e espaço através da exploração de um cenário. Foi uma ideia minha desde cedo que o jogador pudesse também imergir-se, explorando a mente de uma personagem central. É este aspecto do jogo sobre o qual me sinto mais desiludido por ninguém o ter perseguido. Existe, na verdade, uma ideia bastante perniciosa de que ao desenhar jogos temos de fazer o jogador identificar-se sobretudo com a personagem controlada no jogo, que não se lhe pode dar muita personalidade, dado que pode colidir com a personalidade do próprio jogador. Esta é uma noção muito errada e originou muitos, muitos jogos amaldiçoados por um protagonista completamente desinteressante.

Tem havido uma discussão persistente sobre se “os videojogos podem fazer-te sentir uma emoção?” ou se “os videojogos são uma arte?”. Questões que eu acho que jogos como THE DARK EYE (e certamente ICO) já deviam ter encerrado há muito tempo atrás. Mas a reticência da indústria em providenciar profundidade psicológica às personagens jogadas, as mais importantes no jogo (!), está a impedir que esta frente se desenvolva.

CG : Depois de algum tempo a jogar os jogos da Zoesis Studio fico a pensar que, por mais divertidos e interessantes que estes projectos são, se encontra muito longe do género de jogo que explorou em THE DARK EYE. Alguma vez pensa em voltar a fazer algo nesta escala de novo?

RL : Sim, os projectos da Zoesis são de um género completamente diferente. Esses apelaram às minhas perícias técnicas mais do que artísticas e baseavam-se em criar uma personagem verdadeiramente reactiva em vez de contar uma história. Penso que muito terreno foi desbravado com THE DARK EYE que não voltou a ser perseguido em jogos mainstream (uma excepção é ETERNAL DARKNESS: SANITY’S REQUIEM). Com cada projecto em que me envolvia, procurei oportunidades para expandir alguns dos elementos do DARK EYE, mas até agora, ainda não tive a oportunidade. Penso que a indústria dos jogos tem de expandir a noção do que é um jogo para que eu pudesse regressar a esses tempos experimentais (eu acredito que isto irá acontecer).

CG : Olhando para trás, muito mudou na indústria dos videojogos nestes últimos anos. Como alguém que está em contacto directo com outras formas de expressão artística, o que pensa sobre os videojogos, em geral, e da progressão que têm feito até agora?

RL : Não havia nada de exageradamente animador em criar jogos de vídeo nos meados dos anos 90: ninguém sabia o que iria vender, por isso qualquer ideia podia ser tida em conta seriamente. Os jogos cedo caíram em géneros específicos, derivados dos seus predecessors de sucesso (sobretudo devido aos custos de produção de um jogo de nível A). Sinto que apenas recentemente a indústria voltou a tomar ricos e expandir o reportório de jogos. Estou bastante optimista acerca do futuro dos videojogos, para dizer a verdade. Penso que os jogadores estão a tornar-se bastante atentos ao conteúdo formal e que os produtores vão ter de responder com uma forma de criar jogos mais aventureira.

CG : Por fim, se eu lhe pedisse para escolher os mais distintos exemplos de excelência nos videojogos, exceptuando este seu, quais outros jogos enunciaria?

RL : Existem muitos jogos de altos valores artísticos. Sinto-me um pouco hesitante em fazer uma lista, uma vez que não sou um jogador compulsivo e não joguei, de todo, muitos dos jogos famosos. Certamente que na minha lista estaria ICO de Fumito Ueda, o qual eu achei profundamente comovente (e não usa quase diálogo nenhum!). Mais recentemente gostei do mundo do BIOSHOCK, apesar de na realidade eu não jogar first-person shooters, porque achei que a experiência estética do jogador tinha sido brilhantemente pensada não obstante.



 

 

 

> “It is only by the means of the teeth that I can restore myself to peace and to reason.”;

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 

> “Once upon a midnight dreary, while I pondered weak and weary" - a figura obscura e retorcida que se encontra emoldurada numa parede remete ao grande poema de Poe, 'The Raven'.

 

 

 

 

 

 

 

 

 



> Russ Lees é um criativo cujos focos de interesse são dispersos. Herda o seu gosto pelo teatro da sua família, tendo-se destacado por duas peças, 'Nixon's Nixon', acerca dos últimos momentos vividos na Casa Branca pelo presidente, e 'Monticel', um drama de feições políticas.

Mais recentemente, o seu trabalho como engenheiro tem-se materializado através do estúdio Zoesis, onde tem explorado a tecnologia reactiva de personagens até pontos quase inéditos. Também participou na produção da série de simuladores militares Full Spectrum Warrior dos estúdios Pandemic.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

> A (aparentemente) inofensiva fachada da casa, ladeada pela vegetação, oculta um lugar de crime cruel e premeditado, numa encenação do conto 'The Cask of Amontillado', que culmina com uma das mais brutais vinganças jamais concebidas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

> 'Whenever it fell upon me, my blood ran cold; and so by degrees – very gradually – I made up my mind to take the life on the old man, and thus rid myself of the eye for ever.' (Edgar Allan Poe, em Tell-Tale Heart).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

> Jóias e riqueza: os despojos de uma vida outrora boémia, agora reduzida ao isolamento e tédio.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

> As pinturas de conteúdos variáveis no estúdio do Tio propõem metáforas perturbantes e ambíguas que se relacionam com o conto que está a ser jogado no momento.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

> “Every exit is an entrance to somewhere else” (Tom Stoppard)

 

 

 

 
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