A
difícil tarefa de começar um texto: escrever a frase
que o estabeleça. Torna-se tudo ainda mais complicado quando
se pretende falar de um jogo como REZ,
a obra-prima de Tetsuya Mizuguchi e da sua United Game Artists, lançado
numa época de declínio da SEGA que culminou na mediática
decisão de encerrar as portas às divisões de
criação de hardware e à eventual reestruturação
de toda a disposição empresarial.
Originalmente
concebido para a Dreamcast sob o nome de Project
"K",
REZ
possui um mundo próprio com personagens anónimas, como
a nossa. A história é sucinta e simplesmente composta
do essencial para conferir à experiência de jogo um sentido.
Um sistema que impõe barreiras ao seu núcleo - representado
por uma entidade feminina. A nossa personagem surge do vazio: pura
informação capaz de interagir com os demais blocos de
informação, evoluir e exprimir novas capacidades. Contudo
é no jogar que a experiência reside, um misto de música
e formas, cores e vibrações que compõe a mais
complexa e emocionante sinestesia alguma vez percepcionada num jogo
de vídeo.
Áudio
e vídeo tomam o lugar da narrativa, assumem um protagonismo
reforçado pelas artes aqui recriadas: cada cenário é
composto de formas arquitectónicas elaboradas que remetem a
alguns dos estilos mais canónicos desde o antigo Egipto à
Mesopotâmia, passando pela China e Índia. A sua recriação
é feita mediante linhas, formas geométricas, manchas
de cor e luzes, são uma sentida e assumida inspiração
nas regras geométricas de Kandinsky. Reconhecem-se as suas
linhas, ora rectas ora sinuosas, assim como o cuidado posicionamento
dos volumes e texturas em harmonia recíproca.
Cada
edifício é um traço provisório, susceptível
de se alterar com o desbloqueamento de mais um sector. Percorremos
o espaço virtual rumo a uma inédita lição
sobre evolução, humanidade e o nosso próprio
planeta. Sentimo-nos parte de um sistema, de um produto informático
e ao mesmo tempo um elemento natural: Mizuguchi faz a ponte entre
tecnologia e biologia, apontando para um futuro trans-humano e orientado
para o Cosmos.
São
inegáveis as referências à infância do desenho
computorizado, em wireframe, do 3D inicial, e das suas aplicações
em formatos multimédia e no cinema - são igualmente
identificáveis as alusões a TRON
e à sua pioneira representação visual do interior
de um sistema informático. REZ
é também uma homenagem aos primórdios dos videojogos:
clássicos intemporais como TEMPEST,
de David Theurer, STAR WARS,
a versão arcade de 1983 lançada pela Atari, o próprio
BATTLEZONE
ou mesmo SPACE HARRIER
demonstram ter sido uma grande inspiração para os seus
visuais manifestamente retro. No que concerne à jogabilidade,
PANZER DRAGOON
é consensualmente o jogo mais aproximado e de onde o título
da U.G.A. extrai o sistema de navegação com uma mira,
o lock-on limitado a um número de objectos ou mesmo
o ataque automático Overdrive - ataque Berserk
no título da Team Andromeda.
O
ritmo das músicas é imparável e evolui à
medida que desbravamos o caminho por entre os diversos sectores do
sistema que percorremos num bailado techno de interacções
entre a nossa personagem e os demais objectos - também eles
em sincronia com o tempo musical na forma como surgem e desaparecem
do nosso campo de visão.
A
temática por detrás da obra de Mizuguchi é difícil
de descortinar. O jogo possui uma linguagem muito própria,
quase não contendo texto ou cenas intermédias para explicar/contextualizar
os acontecimentos. Contudo, é neste precisamente nesta mudez
que se estabelecem as armações que o suportam, com temáticas
elaboradas e provocatórias, cripticamente expostas sobretudo
na quinta, e final, fase do jogo. Neste nível acompanharemos
a evolução da vida na Terra, ainda que de forma convenientemente
abreviada, desde as espécies mais tímidas que ocupavam
as profundezas dos nossos oceanos, até ao ser humano e a sua
arte, história ciência. É uma convicta ode à
tecnologia. Não uma visão da tecnologia como ameaça
ao Homem, ou como um instrumento do caos e da desordem: a tecnologia
é aqui visionada como o canal para que o homem se conheça
a si mesmo, o caminho entre o Homem, desconhecedor da sua origem,
e a sua criação, a eternidade. De encontro às
suas raízes. Conceito
que se torna paradoxal considerando que a tecnologia é uma
criação da Humanidade.
À descoberta do Homem, à descoberta do nosso mundo e
do nosso futuro. É essa a experiência de REZ,
um dos mais flagrantes exemplos de arte nos videojogos e cuja recepção
no mercado traça um detalhado, porém amargo, perfil
da generalidade dos seus consumidores.