Situações
de perigo extremo aproximam as pessoas, tornam um grupo mais coeso
e ressalvam o que há de melhor em cada um de nós, individualmente.
SOS THE FINAL ESCAPE
desenvolve, na sua própria ficção, a ideia de
que o instinto de sobrevivência não se sobrepõe
necessariamente à demonstração sincera de altruísmo.
Presos num terramoto em Stiver Island, Keith, um repórter novato,
resgata Karen, uma cidadã local. Juntos vão procurar
uma saída das várias situações de perigo
extremo que surgem incessantemente. A cidade é um deserto caótico
e labiríntico de destroços por onde o jogador procura
uma saída - na realidade não mais do que uma porta para
uma nova ameaça à nossa integridade como seres virtuais.
A solidão da nossa
demanda, rumo ao interior da ilha, é dissipada pela nossa frágil
acompanhante: a partir do momento em que a encontramos passamos a
ser o seu guardião e é o nosso dever zelar pela sua
segurança e bem-estar. Desde cedo se prevê uma relação
amorosa entre os dois personagens, esquecidos pelo mundo, ainda que
tal apenas se manifeste de forma muito subliminal, uma solução
inteligente e acertada da pequena equipa da IREM.
A mecânica de jogo é
efectivamente muito simples e até, ocasionalmente, simplificada.
À semelhança de outros jogos de exploração
tridimensionais, o nosso personagem pode deambular pelos espaços
livremente, compará-los com os mapas e procurar um caminho.
Por vezes, existe a possibilidade de seguir diferentes rumos, aspecto
que se traduz na pluralidade de situações possíveis
- incrementando o valor de repetição da aventura - e
de desfechos. Ao longo do nosso percurso encontraremos algumas personagens:
alguns cuja salvação está ao nosso alcance, outros
cujo destino ficou selado com este desastre. É dado ao jogador
o poder de alterar alguns aspectos da narrativa ainda que outros sejam
fixos e irreversíveis. A morte, como tema, é aqui abordado
de forma assaz dramática, pela forma intensa como o jogo explora
a incapacidade, deliberadamente equacionada, do jogador prevenir a
ocorrência de algumas fatalidades. Como se da própria
realidade sórdida se tratasse, cabe ao jogador assimilá-la
e prosseguir na sua própria salvação, rumo ao
interior da ilha.
É incompreensível
como um jogo com esta dimensão emocional e características
únicas tenha sido ignorado por completo pelo público
ocidental e oriental. Certamente se trata de uma pequena produção,
um projecto singular e que, em certos momentos, implora maiores valores
de produção ou controlo de qualidade. Todavia, trata-se
claramente um projecto despretensioso que aponta para um valor de
comercialização inferior ao da maioria dos jogos e que
acaba por superar, inclusivamente no departamento técnico,
algumas das chamadas produções relevantes, comercializadas
a preços injustos e ofensivos. O tratamento visual é
francamente ligeiro e no entanto supõe um aproveitamento compreensivo
de alguns dos efeitos e requintes inicialmente possíveis na
sua plataforma. Os blocos interactivos, ou secções da
cidade, estão representados com algum detalhe e existe muito
espaço para explorar. Mais surpreendente é o vislumbre
caótico da cidade em ruínas, um excepcional pano de
fundo que causa vertigem e horror.
Convém referir que
Stiver Island é, não coincidentemente, uma ilha artificial, numa possível referência à obra controversa do aeroporto internacional de Kansai, na baía de Osaka. A ilha
virtual de THE FINAL ESCAPE consiste de uma estrutura bem mais complexa, justamente, na medida em que suporta toda uma cidade amplamente
populada. Não é de excluir que o conceito de base
para o jogo possa ter originado a partir de um temor não admitido que perdura em muitas das zonas
do Japão actual, um país frequentemente vitimado por
catástrofes naturais. Todavia, o epicentro da intricada
trama do jogo - ressalvo que a exposição narrativa nem
sempre é a mais adequada - reside numa conspiração
que deixa o jogador balançar entre duas explicações
possíveis para o desastre. O trágico evento, que num primeiro olhar parece
tomar forma a partir dos improváveis acasos da natureza, perfila-se na verdade como um incidente cuidadosamente
planeado e intencional.
São claras as frentes
por onde se tentou diversificar a experiência de jogo. O nosso
personagem pode equipar toda uma gama de acessórios que mudam
o seu aspecto físico. As suas roupas e alguns dos adereços
vão-se degradando com o passar do tempo. Em determinadas ocasiões, os personagens fazem uso de meios de transporte, como um barco improvisado ou uma bicicleta, uma iniciativa que expande largamente os limites da jogabilidade. A sua essência, contudo, reside na avaliação dos
espaços e da procura por um caminho por onde progredir entre a cidade em escombros, processo que chega a desafiar a lógica e a paciência. Por vezes, o rumo
também é decidido através de decisões
simples como eleger qual a direcção por onde seguir, ou em certos momentos mais determinantes na esquematização da narrativa, qual das restantes personagens acompanhar.
Uma constante a toda a aventura
é o elemento da água, símbolo de recuperação
e salvaguarda. Sempre que o personagem encontra uma fonte de água
potável, seja ela uma torneira numa casa de banho ou uma boca
de incêndio, é possível salvar a partida, beber
água para recuperar a nossa energia ou mesmo armazená-la
em garrfas para consumir em qualquer altura. Curiosamente, o número de itens que
podem ser transportados é restrito, factor que implica uma constante
necessidade de tomar de decisões sobre quais os objectos com que o jogador vai
querer permanecer e os que vai preferir descartar.
Não existe nenhuma
razão plausível para que não se estabeleça,
desde já, que SOS apresenta mais do que uma tímida homenagem
a ICO: o cenário insular, a existência
de uma acompanhante feminina autónoma e a recriação do símbolo
primordial da obra de Fumito Ueda, a união entre personagens
materializada pelo acto de dar as mãos. Todos estes aspectos
são compartilhados pelo jogo da IREM, não como uma forma
de plágio descarada ou insubordinada, mas sim como uma homenagem
sentida, no âmbito de um jogo valioso e original por mérito próprio. SOS THE FINAL ESCAPE oferece uma experiência
única e breve que dificilmente será esquecida por aquele
que a souber apreciar. É uma das mais sólidas provas
de vida dos pequenos estúdios e o testemunho de que a imaginação
não se subalterniza devido a imposições técnicas
ou moderações orçamentais.