Eric Viennot
A VIDA NÃO SE CINGE AOS VIDEOJOGOS



Perfil - 08 / 02 / 07

 

Parte II
Entrevista

COREGAMING : Possui uma formação em artes plásticas e foi docente na Universidade da Sorbonne (Paris, França) durante 5 anos. Mesmo tendo participado à exposições multimédia nos anos 80, nada o predestinava a ser game designer. Qual foi o declic? Foi um jogo em particular ou simplesmente a evolução do media?

ERIC VIENNOT : Foi gradual. Primeiro interessei-me pela imagem numérica (digital) e a 3D. Sendo de artes plásticas, era para mim uma nova forma de expressão visual, um campo aberto de novas possibilidades gráficas. Progressivamente, tornei-me director artístico. No início dos anos 90 estava ligado à vários editores multimédia para os quais criava packagings, diversos suportes de comunicação, antes de me ocupar da interface de algumas produções. De seguida percebi que poderíamos criar universos animados e mesmo histórias graças a esse novo media. A vontade de contar histórias é a premissa da minha primeira criação, l’Album secret de l’oncle Ernest, um jogo de aventura para crianças. Para isso, inspirei-me mais de filmes (Meu Tio de Jacques Tati, O Homem do Rio de Broca, Os salteadores da arca perdida…) e de universos romanescos (Júlio Verne, Hergé, Stevenson...) do que videojogos. Tornei-me um jogador muito tarde, jogando nomeadamente com o meu filho que hoje tem 11 anos.

CG : Terá o estúdio Lexis Numérique sido fundado com o objectivo de criar videojogos? O vosso primeiro projecto vídeo lúdico, l'Album secret de l'oncle Ernest, foi lançado em 1998, ou seja, oito anos após a fundação do estúdio. Entretanto, participou em numerosos projectos multimedia. Não era essa a função primária do estúdio, a criação de projectos multimedia?

EV : Algo foi determinante na criação do estúdio Lexis Numérique, o meu encontro com José Sanchis, que se tornou meu cunhado e sócio. Engenheiro de formação, teve desde cedo um espírito empreendedor e levou-me a criar com ele o estúdio Lexis Numérique. Dividimos as tarefas, coube-lhe a gestão e a parte comercial, a mim a criação e a produção. De início éramos efectivamente um estúdio de criação de imagens numéricas daí o nome Lexis (como Léxico) Numérique. Depois, logicamente, sendo José Sanchis informático, acrescentámos o desenvolvimento informático à nossa prestação de serviços. O objectivo era poder criar um programa multimédia na íntegra sem recorrer a terceiros. Em meados dos anos 90, deu-se o fenómeno do multimédia cultural, o que permitiu lançar-nos na produção. Mas rapidamente fui atraído pelo universo dos videojogos que me pareceu mais preocupado com a experimentação formal e a narração, basicamente, via nele o entretenimento do futuro.

CG : A sua primeira criação vídeo lúdica, l'Album secret de l'oncle Ernest, um jogo de aventura point’n’click para MAC e PC claramente orientado para os mais jovens, não é considerado pela crítica como um jogo, sendo considerado como um vulgar programa, o que é para mim o pior insulto para um videojogo. Não será pelo facto de se dirigir aos mais jovens? Como o qualificaria? Pensa que se trata de um jogo ou de um programa?

EV : Esta pergunta agrada-me imenso porque para mim efectivamente l'Album secret de l'oncle Ernest é um verdadeiro jogo. Um pequeno jogo (5 a 6 horas apenas são necessárias para o acabar) mas um verdadeiro jogo, muito diferente da maioria dos programas ludo-educativos da época. Realizado em programação objecto, contém mesmo princípios que encontramos em numerosos jogos (não linearidade, soluções múltiplas, IA de animais,...).
Para mim é um jogo de aventura. Conseguiu reunir crianças e pais à volta do computador, bem antes da moda actual do casual gaming.

CG : Só obteve reconhecimento como game designer após a criação de In Memoriam. Não considera deplorável o facto das criações destinadas aos mais jovens serem consideradas obras menores, mesmo tendo elas uma importância capital na formação da personalidade de cada indivíduo?

EV : Exacto, mas isso também é verdade noutros domínios nos quais as produções para mais jovens são consideradas erroneamente como menores. Encontramos no entanto verdadeiras obras primas : Uncleberry Finn por exemplo na literatura, ou alguns filmes da Pixar no cinema. Para mim, l'Album secret de l'oncle Ernest é tão importante quanto In Memoriam e acho efectivamente deplorável ser necessários criar conteúdos para adulto para ser respeitado e considerado com um verdadeiro criador.

CG : In Memoriam é sem dúvida um dos jogos mais ousados e originais de todos os tempos, não tenhamos medo de afirmá-lo. Mas apesar das boas vendas e da excelente crítica no conjunto, não pensa que o jogo merecia melhor? Não pensa que o jogo sofreu por ser francês? Podemos estabelecer um paralelo com o cinema em que o cinema americano ofusca, e isso no mundo inteiro, as outras produções. Não pensa que na Europa os jogos japoneses ofuscam as produções ocidentais? Sou tentado em dizer que o jogo teve mais projecção na imprensa generalista do que na especializada, e que conquistou mais o grande público do que os famosos coregamers.

EV : É verdade que tivemos uma cobertura por parte da imprensa generalista e da televisão que poucos jogos tiveram até hoje. No entanto, tivemos também excelentes notas na imprensa especializada. Mas muitos jornalistas disseram-me «vou jogar ao jogo mas os nossos leitores preferem jogos mais básicos». A boa surpresa é que o jogo foi um sucesso nos Estados Unidos. Penso que se trata muitas vezes de um problema de marketing. Na Europa, o jogo foi se calhar demasiado apresentado como um jogo de autor. Nos Estados Unidos, o editor apresentou-o como um thriller destinado ao grande público. Se calhar por isso é que funcionou melhor lá. Muitas vezes o sucesso de um jogo depende do marketing. Sem marketing dificilmente um jogo encontrará o seu público. Poderá ter um sucesso de estima graças ao hype mas dificilmente será um sucesso comercial. É pena. Novos meios de divulgação (nomeadamente a Internet) poderão alterar a realidade.

CG : Apesar terem universos quase antagónicos, as vossas obras têm uma essência comum (sobretudo l'Album secret de l'oncle Ernest e In Memoriam). Como explica isso? Podemos falar de um Viennot’s Touch?

EV : Penso que é devido ao facto de serem produções um pouco artesanais. É mais fácil para um autor colocar o seu toque numa produção que envolve uma dezena de pessoas (houve bastante mais intervenientes para In Memoriam mas o núcleo era constituído por uma dezena de colaboradores) do que numa produção maior.

O meu passado de desenhador e de director artístico influenciou sem dúvida imenso as minhas criações. Escrevo o argumento dos meus jogos, crio uma parte do gamedesign e encarrego-me também da direcção artística. É sem dúvida por isso que as minhas realizações têm pontos comuns mesmo abordando universos diferentes. Tento igualmente que através os meus jogos as pessoas descubram coisas que as interessem mas que raramente encontram num jogo. Além da simples diversão, concebo os meus jogos como uma possibilidade de enriquecimento pessoal para o jogador.

CG : O universo da série L’Oncle Ernest lembra-me estranhamente as criações de Jean-Pierre Jeunet e as músicas têm um toque de Yann Tiersen, mas não consigo explicar porquê. Quais são as suas principais influências artísticas?

EV : Não é a primeira vez que ouço isso. É verdade que o universo de L’Oncle Ernest é bastante próximo de Jeunet, se calhar por sermos mais ou menos da mesma geração. Quero frisar que as músicas de L’oncle Ernest, compostas por Jean-Pascal Vielfaure, precedem as de Tiersen para Amélie Poulain. As minhas influências cinematográficas são diversas. Gosto particularmente do cinema americano independente de Coppola, Jarmush, Wayne Wang, Eastwood, Lynch, James Gray ou de mais antigos como Nicolas Ray. Gosto igualmente do cinema asiático nomeadamente Ozu, Kitano ou Wong Kar-Wai. Em literatura, sou um grande fã de policiais, de grandes clássicos como Hammet, aos contemporâneos como Elroy, Connely ou Dantec. Sou também um grande apreciador de séries americanas. As minhas preferidas são Six Feet Hunder, 24H e Lost.

CG : Existe uma grande quantidade de estúdios e de editores lioneses (oriundos de Lyon em França), Arkane Studios, Ludoïd, Infogrames (agora Atari), Eden Studios, Frédérick Raynal, entre outros. Também é originário de Lyon, pensa que podemos falar de uma escola vídeo lúdica lionesa?

EV : Cresci perto de Lyon mas passo o meu tempo entre Marselha e Paris. Se existe uma escola lionesa, não tenho a certeza de fazer parte, apesar da simpatia que tenho por Raynal.

CG : Sempre desenvolveu para MAC e PC. No entanto, referiu recentemente no seu blog que estava a colaborar com Paul Cuisset, mítico criador de Flashback, em vários projectos Wii, a nova consola de sala da Nintendo. Não são informações exclusivas que procurámos, mas apenas saber o que o atraiu na nova consola da Nintendo? Consola pouco popular junto dos coregamers, em regra muito conservadores, mas que agrada definitivamente ao grande público e a numerosos game designers. Será que é a facilidade de desenvolvimento e os baixos custos de produção? Ou é o comando revolucionário? E já agora, porque não experimentou a criação para consolas mais cedo?

EV : É claro que há razões económicas. Desenvolver para consolas esteve durante muito tempo fora do nosso alcance. Como muitos pequenos estúdios independentes, o PC tornou-se a nossa plataforma de predilecção. A DS e a Wii inverteram a tendência. São consolas mais acessíveis porque os orçamentos necessários para desenvolver jogos são menos elevados. Mas independentemente do problema financeiro, o que me interessa na política da Nintendo é a sua abertura ao grande público. Os jogos que criei não são destinados aos hardcore gamers. Sempre considerei que os videojogos cresceriam alargando-se para novos públicos, nomeadamente os adultos, as mulheres. Mas, se um dia tenho a possibilidade de desenvolver um jogo para outras plataformas, ficaria imensamente contente. Sempre considerei os videojogos como um novo meio que permite renovar a arte de contar histórias, implicando mais as pessoas, e isso, independentemente da plataforma utilizada.

CG : Quando pensa revelar esses projectos?

EV : Desenvolvi com Paul Cuisset um jogo DS que será lançado dentro de alguns meses. Haverá notícias brevemente. Temos também vários projectos Wii e DS em produção. Falaremos deles em 2008. Estou implicado pessoalmente em dois projectos, um jogo Wii para crianças e um projecto multi-plataformas bastante ambicioso, actualmente em pré-produção.

CG : Esses jogos serão lançados através do sistema tradicional de distribuição ou pensa utlisar a plataforma de distribuição online da Wii, indisponível por enquanto, o WiiWare?

EV : O Live Arcade ou o WiiWare são efectivamente alternativas interessantes para produtores como a Lexis Numérique.

CG : Que opinião tem acerca das duas outras consolas de nova geração, a XBOX 360 e a PS3?

EV : A PS3 interessa-me bastante por ser uma consola mais familiar do que a XBOX 360. Acho que é uma máquina fabulosa que sofre de uma má imagem devido a política comercial desastrosa da Sony. A PS3 merece melhor.

CG : Pode-nos revelar mais sobre o seu projecto de ficção televisiva implicando vários medias (blogs, sites Internet e jornais)  ? É um projecto muito interessante.

EV : Esse projecto é evidentemente um seguimento lógico à In Memoriam. A conclusão a que cheguei com In Memoriam, é que esse tipo de projectos tem tanto, senão mais, afinidades com o universo da ficção televisiva do que com o universo dos videojogos, muitas vezes muito conservador. Trabalho neste momento num projecto de séries televisivas com uma dimensão interactiva com diversos medias: estou actualmente a escrever o argumento. Olhando para a ambição do projecto e o seu custo, não tenho a certeza que venha a concretizar-se. Mas nunca se sabe. O universo da ficção televisiva tem de renovar-se para tentar atrair o número crescente de telespectadores que têm tendência em abandonar a televisão em proveito de outros medias como a Internet e os videojogos.

CG : É muito próximo do público, o que eu acho admirável. É por natureza ou para se manter atento ao público?

EV : É uma consequência natural da minha actividade. Considero que os artistas não podem continuar a viver na sua torre de marfim como era possível no século XIX. É uma concepção romântica do artista que me parece desfasada com a nossa época. Uma artista deve comunicar para convencer, partilhar convicções. Estimo que faz parte do meu trabalho. É uma consequência natural. O artista deve também estar atento ao público. Mas deve no entanto ponderar. Tentar agradar a gregos e a troianos é renunciar as suas convicções. Um game designer deve ter convicções fortes para conseguir transmitir uma visão. Ao mesmo tempo, deve ser suficientemente humilde para se colocar na posição do jogador, antecipar as suas reacções e emoções. É um equilíbrio difícil.

CG : Em que medida é próximo de outros grandes game designers franceses como Benoît Sokal, Michel Ancel, Eric Chahi, Paul Cuisset, Frédérick Raynal ou David Cage?

EV : Estou com todos de tempos a tempos, com uns mais de que outros. Paul Cuisset tornou-se um amigo, colaboramos há dois anos. Mas tenho muito admiração por todos os criadores que citou por razões diferentes.

CG : Que opinião tem sobre o futuro do media? Os jogadores são em regra pessimistas, e você?

EV : Os jogadores são muitas vezes pessimistas porque muitos viveram emoções vídeo lúdicas fortes no passado e que essas estão ligadas à infância. Têm tendência a sacralizar o passado. Contrariamente ao que afirmam alguns espíritos pessimistas, estou convicto que ainda estamos no início. A idade de ouro está para vir. Mas não sei se será necessário esperar 10 ou 20 anos.

CG : Para acabar uma pequena mensagem aos nossos leitores.

EV : Gosto imenso de Portugal, nomeadamente da cidade de Lisboa e os seus arredores, onde filmamos várias sequências de In Memoriam 2. Espero que apreciaram a entrevista, se for esse o caso, convido-os a visitar regularmente o meu blog.

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