Quando
RYU GA GOTOKU
foi anunciado um pensamento comum invadiu as mentes dos mais atentos
seguidores de videojogos: a SEGA teria voltado a investir numa sequela
de SHENMUE.
Não que as notícias o especificassem ou que o projecto
alguma vez tivesse alguma relação maior com a obra-prima
de Yu Suzuki. No entanto, a vontade de alguns voltarem a colocar as
mãos num novo título desta série iludiu parte
da população dos videojogos por algum tempo. Posteriormente
seguiram-se as primeiras imagens mostrando uma Tóquio nocturna
iluminada pelos brilhantes neons, altamente movimentada e, algures
pelo meio, um personagem central desconhecido. O título ocidental,
bem mais prosaico que o original, foi revelado pouco depois: YAKUZA,
o novo projecto multi-milionário da SEGA, cujos fundos derivaram
da fusão com a Sammy e reestruturação de alguns
dos seus mais famosos estúdios de desenvolvimento.
É
possível que as primeiras horas desmotivem o jogador casual
devido à incomum a quantidade de diálogos e cutscenes
introdutórios. YAKUZA
é um dos jogos mais story-driven dos últimos anos. Toda
a narrativa se revela interessante e coerente: o nosso personagem,
Kazuma, desenrola um papel cada vez mais importante no submundo do
crime: a sua reputação como novo "dragão"
da família Dojima - uma das mais conceituadas dentro desta
hierarquia de criminosos - começa a ser conhecida e, invariavelmente,
invejada por parte dos seus familiares, inclusivamente aquele que
ousou chamar seu próprio irmão por afinidade, Nishiki.
Tudo começa numa noite perfeitamente normal e rotineira na
sua vida. Primeiramente devemos ir extorquir dinheiro a um crápula
empresarial que teria lucrado com negócios ilícitos,
episódio que serve como introdução ao sistema
de jogo e sistema de combate. Horas mais tarde, o bar do costume parece
já estar à espera da nossa presença e daquela
do nosso "dito" irmão: celebra-se numa festa muito
privada a promessa da ascensão de Kazuma a um novo estatuto,
sonho que também era partilhado por Nishiki. Yumi, amiga e
paixão de ambos, também está presente. Completa-se
assim o triângulo amoroso. Bebem-se uns copos, dão-se
umas risadas e, com a alegria da bebida, surge a sinceridade áspera
de Nishiki.
Mas
Sohei Dojima, o mais alto e respeitado membro desta família,
também parece estar de olho em Yumi, forçando-a a ir
até ao seu escritório nessa mesma noite. Nishiki parte
atrás de Yumi para a salvar, acabando por assassinar Dohei.
Talvez por compreender a necessidade de preservar Yumi, de a salvar,
ou por sentir pena de Nishiki, Kazuma decide assumir ele mesmo a culpa
deste assassinato, pelo qual é condenado a 10 anos de prisão.
O
jogo, propriamente dito, começa depois de Kazuma sair da prisão
e voltar ao seu meio social antigo, para encontrar um mundo completamente
diferente daquele que tinha conhecido antes de ser detido. Mantêm-se
as multidões, as luzes e as mesmas ruas de sempre. Porém,
toda a organização criminal se modificou, assim como
os próprios amigos de Kazuma, ainda que alguns se mantenham
igualmente fiéis. E os amigos vão ser extremamente valiosos
para ajudar a nossa personagem numa altura em que toda a família
Dojima e associados estão no nosso encalço - todos pretendem
exercer uma justiça rancorosa pela morte de Sohei.
Seria
impossível falar do jogo sem fazer menção às
linhas que estabelecem a história, o elemento de longe mais
importante neste jogo. Toda ela é de uma profundidade raramente
vista em videojogos, mesmo aqueles que normalmente se vangloriam de
ter histórias elaboradas. Contudo tal facto não surpreende
quando sabemos que o argumento do jogo foi escrito por Hase Seishu,
um dos mais conceituados romancistas japoneses cujas obras já
foram muitas vezes adaptadas ao cinema. Outro aspecto que não
pode passar despercebido é a profunda preocupação
por criar personagens carismáticas, distintas e com uma forte
personalidade, mas dentro dos parâmetros do realismo, isto é,
sem recorrer a características visuais exageradas ou demasiados
adereços. Existe, inclusivamente, um menu de consulta para
que conheçamos toda a intricada hierarquia dos membros das
diversas famílias desta organização, bem útil
por sinal.
Ciente
de que alguns velhos jogadores, sobretudo no mercado japonês,
começavam a abandonar o hábito de jogar videojogos por
acharem que as produções actuais não acompanharam
a sua evolução, Toshihiro Nagoshi, o criador, apontou
para uma personagem mais madura, algo incomum no panorama dos videojogos
actuais, mas que se adequa na perfeição ao lema por
detrás desta produção: mostrar que os videojogos
nem sempre se constroem nos mesmos temas estandardizados e reincidentes
que parecem preencher a grande parte do mercado contemporâneo.
A
acção de YAKUZA
localiza-se em Kamurocho, uma maqueta virtual do distrito de Kabukicho,
na realidade conhecido pelos maus vícios, casas de alterne,
jogo e criminalidade - o tipo de local onde a Nintendo eventualmente
teria tido os seus famosos hotéis de amor entre 63 e 68. Apesar
de ter optado por um nome falso, a recriação deste distrito
da cidade de Tóquio é composta de alguns detalhes típicos
deste lugar: desde a afamada loja Don Quixote até ao arco iluminado
que dá cor a entrada sul deste bairro. As ruas estão
povoadas com grandes multidões que se deslocam por entre si,
alguns meros peões, outros peças determinantes para
a progressão e sucesso da nossa aventura. Porque é isso
que este jogo é, uma aventura com um grande fundo narrativo
que sabe a um RPG na parte de exploração e que revive
o género moribundo dos beat'em'up, em toda a sua brutalidade,
algo que já não víamos num jogo SEGA desde os
tempos do (imortal) STREETS
OF RAGE. Qualquer
objecto na rua serve para agredir o próximo inimigo e é
curioso observar que cada um possui um nível de resistência
próprio, o que pode resultar no inevitável prazer de
partir uma bicicleta ou um sinal de trânsito contra a cabeça
de um oponente mais provocante. Nestes instantes sentimos que nos
foi devolvida toda a década de 90.
Por entre uma trama de devassidões, crimes e traição,
também se encontram fragmentos de moralidade: Kazuma é
personagem determinado, um símbolo de honra, respeito e altruísmo
mais facilmente associado a um guerreiro medieval japonês do
que a um membro da máfia; o seu mentor, Shintaru Fuma, é
um homem calmo, ponderado e honesto que lida na sua velhice com os
pecados do seu passado como assassino profissional; Shinji, o seu
mais fiel seguidor e amigo, é um exemplar companheiro; e finalmente
Haruka, uma jovem órfã cuja inocência e pureza
contrastam com o mundo onde cresceu e vive. As partes de interacção
entre Kazuma e Haruka são um pico desta experiência -
Kazuma protege esta criança com a sua vida e Haruka concede
ao nosso personagem a motivação para atingir os seus
objectivos.
Para além da história principal, o jogo faz-se de histórias
paralelas que servem para aumentar a nossa experiência e o tempo
de jogo. Algumas destas side-quests estão interligadas e cabe-nos
a nós estabelecer o elo entre personagens-chave espalhadas
por todo o distrito. Por vezes chegamos até a compreender melhor
alguns personagens da história principal, as suas motivações,
através destes sub-plots tão genialmente implantados
por entre o tronco narrativo do jogo. As possibilidades são
imensas: muitos dos locais da cidade vão-se abrindo com o nosso
progresso, desde lojas de penhores, cafés, bares, clubes de
acompanhantes, casas de jogo, massagens e um muito amigável
Clube SEGA.
Ainda que se tratem de jogos completamente distintos, YAKUZA
acaba por se inspirar muito em SHENMUE
na forma como tenta recriar, através de um motor gráfico
compreensivelmente mais pobre, um espaço urbano amplo, povoado
e com um elevado número de espaços interiores. A parte
de luta é bastante mais simples e tem um menor número
de técnicas para desenvolver do que no título de Suzuki,
cuja dimensão chegava a ser assustadora - muito semelhante
a VIRTUA
FIGHTER. Mas mais uma vez podemos depender das interacções
com as personagens para aprender novas técnicas de combate,
algumas delas essenciais nas lutas aleatórias que vão
surgindo enquanto percorremos a cidade. E mais uma vez nos encontraremos
em situações de agravada inferioridade numérica,
nada que o imenso potencial do nosso personagem não permita
ultrapassar.
Se for devidamente explorada, esta grande produção salienta
as grandes singularidades e empenho dos seus criadores - qualidades
que não raramente se encontram nos mais ínfimos pormenores,
aqueles que só os mais atentos ousarão conhecer. Se
entramos num bar e pedimos uma bebida logo se segue uma curta mas
elucidativa descrição da bebida em questão, qual
a sua marca e a sua fama - deleitoso pormenor que talvez derive do
elevado interesse de Nagoshi pelas bebidas brancas. Ou o episódio
no qual Kazuma vai retocar a imagem de um dragão tatuada nas
suas costas, ocasião que serve para aclarar toda a simbologia,
segundo a interpretação cultural japonesa, por detrás
deste mito.
Estamos
perante uma excelente recriação do mundo do crime sino-japonês
e das suas máfias e tríades, assim como uma belíssima
intriga cuja conclusão não pode deixar de surpreender.
Alguns dos seus momentos de maior impacto narrativo e emocional persistirão,
certamente, na nossa memória, pelo menos até a experiência
ser concluída na sua sequela, já lançada no Japão
e sem previsão de chegada à Europa. É uma visão
diferente e muito mais profunda de um tema que muitos jogos têm
vindo a recriar ultimamente. RYU
GA GOTOKU (que em
japonês significa "como um Dragão") foca-se
no drama humano e alguns temas da sociedade actual japonesa, não
apenas na violência e marginalismo. E nesse aspecto Nagoshi
revelou-se o perfeito discípulo e percursor dos ideais desse
grande génio (ignoto) chamado Yu Suzuki.